Círio de Nossa Senhora da Arrábida 1938

O Novo Círio de Nossa Senhora da Arrábida foi fundado em 1892 pelos pescadores do Bairro do Troino, freguesia da Anunciada de Setúbal. O grosso dos participantes era constituído pelos próprios pescadores, pelas operárias conserveiras os soldadores de latas e os vendedores de peixe.
Nos primeiros anos, as festas iniciadas na serra vinham acabar com um ou dois dias de arraial na cidade, no antigo Largo das Almas, actual Largo dos Combatentes.
Rapidamente começaram a ser conhecidas por "festas dos pobres", por comparação com as festas do Antigo Círio, "festas dos ricos", que renascera no ano de 1892. Os dois Círios, organizados por grupos diferentes da cidade, coexistiram durante catorze anos, apesar de algum atrito, até que o Antigo Círio deixa de se realizar a partir de 1906, só renascendo treze anos depois, mas sem fôlego.
Por volta de 1919, as festas do Novo Círio são cada vez mais brilhantes e impõem-se definitivamente às do Antigo Círio.
Em 1932 as festas reduzem-se a um só dia no Convento da Arrábida, em consequência de mais uma crise que afectou fortemente os trabalhadores.
Apesar das crises, as festas da Arrábida realizaram-se sempre com grande adesão e participação.
Em 1942, celebram-se as Bodas de Ouro . "O Novo Círio de Nossa da Arrábida estava totalmente enraizado na alma popular Setubalense e dos Troinenses."
Com inicio em 1955 e durante cerca de seis anos, decorreram obras de restauro e conservação no Convento da Arrábida, pelo que as Festas se realizaram essencialmente na Praia do Portinho da Arrábida.
O ano de 1973, último ano da ditadura do Estado Novo, foi também o último ano em que estas festividades se realizaram por mar. O automóvel, passa definitivamente a ser uma nova fase destas festividades.

O Jornal " O Setubalense", em Julho de 1940, assinala a adesão às festas da Arrábida, nos seguintes termos:
" O nosso povo, sobretudo uma grande parte da gente humilde do populoso e laborioso Bairro do Troino, tem, de há muito, uma verdadeira idolatria, que vem de geração para geração, pelas festas em louvor a Nossa Senhora da Arrábida."
A animação principiava logo na Sexta-feira, à noite, na véspera da partida para a Arrábida, quando uma Banda de Música percorria as ruas da Cidade.
No Sábado, à tarde, partia o Círio, nos barcos. Quando chegavam, os festeiros repartiam-se pelo Portinho e pelo Convento.
Na Segunda.feira, a festa descia de novo à beira mar.
Cantava-se e bailava-se praticamente todo o tempo da festa, ao som da banda. O baile chegava a ser até de manhã.
O Hino da Nossa Senhora da Arrábida era tocado quando alguém fazia publicamente uma oferta mais valiosa à Comissão Organizadora da Festa, no chamado Claustro de São Martinho. Durante os bailes só era tocado quando a rapaziada insistia.
Cantava-se ao desafio, à desgarrada, muitas vezes entre um homem e uma mulher, a dizerem piadas uns aos outros. Cantavam-se músicas populares da época, cantavam-se marchas. No Convento faziam serenatas toda à noite à porta uns dos outros.
Havia também o "ritual da lavagem da cara", muito comum nas festas e romarias, que decorria na Fonte da Samaritana que tem a sua nascente debaixo da capela.
Antes de começar o dia, ia-se" à lavagem da cara", em ranchos, que faziam várias brincadeiras com a água. Lavava-se a cara, a cabeça, molhavam-se uns aos outros.
Ao Portinho, chegavam forasteiros vindos de Lisboa, Palmela, Azeitão, Sesimbra que acabavam por passar a noite na Arrábida e dormir ao ar livre.
O Jornal "O Setubalense", referindo-se às festas de 1946 " por toda a parte da majestosa serra se viam grupos de visitantes com seus farnéis, admirando os encantos que a Serra possui."


Alguns dias antes da festa, a imagem estava exposta em casa da Aia. inicialmente em casa de Maria do Carmo Ratinho, na Avenida Luisa Todi, onde no dia da partida se formava a procissão. As pessoas iam lá rezar. Estava na sala , com a porta aberta. Quando morreu, foi substituída pela Tia Paula. Durante muito tempo, ela seguiu a tradição, e expunha a imagem, fazendo um altarzinho e quem queria dava uma esmola. A Tia Paula é que a vestia para a festa com ajuda da Angelina Silva, que substituiu a irmã Olga. As pessoas, por meio de promessas, foram oferecendo vestidos, mantos, como também estandartes e bandeiras para figurarem na procissão.
A imagem "verdadeira" está na capela do Convento. Esta, que vai na procissão é uma réplica, volta sempre para Setúbal. Para além do vestido e do manto, tem uma cabeleira natural, uma coroa de prata que dá luz ao manto azul por cima do vestido bordado e enfeitado com lantejoulas prateadas. Numa das mãos transporta o Menino Jesus que tem na cabeça uma coroa semelhante à sua. Na outra mão, agarra um ceptro de prata. Depois de toda ornamentada, com apenas meio metro de altura, a Nossa Senhora, mostra a sua grandiosa presença física e espiritual.
          
O andor, antigamente, representava a Senhora da Arrábida sobre uma peanha artisticamente feita, representando a serra com as guaritas, "a Lapa do Médico", trechos da Serra.

No Sábado, havia Missa de manhã na Igreja da Anunciada, e por volta das onze horas, partia o Círio em procissão para o Cais de Nossa Senhora da Conceição onde era feito o embarque para a Arrábida. Mais tarde passou a ser feito na Lota dos pescadores, muito mais próximo de Troino. A procissão percorria, assim, várias ruas da cidade, acompanhada de uma banda de musica, bem como pendões e bandeiras.


Procissão para na Lota dos Pescadores

Tocava o sino da Anunciada. O pessoal das fábricas saía, os barcos apitavam. As operárias conserveiras corriam para a muralha e acenavam com os lenços que traziam à cabeça. O rio ficava cheio de barcos. Um vapor especial levava o andor. Depois iam os outros vapores engalanados, com bandeiras que iam do mastro à proa e à ré, mais tarde foram substituídos por traineiras. Os barcos iam carregados de pessoal. Chegavam a levar 9 a 10 famílias



Há passagem pelo Sanatório do Outão fazia-se uma paragem. Da embarcação que transportava o andor, a Banda de música fazia entoar o Hino da Nossa Senhora da Arrábida. Os doentes vinham para as varandas, acenar com os lenços brancos suplicando há Virgem da Arrábida as rápidas melhoras.

O troço final da viagem, entre a Anicha e o Portinho era apoteótico. As pessoas movimentavam-se dentro dos barcos, o hino fazia-se entoar.
Quando o cortejo marítimo chegava ao Portinho, o andor era desembarcado no meio da praia e colocado numa barraquina de madeira, mais tarde num anexo da taberna do Adão. Seguia depois no outro dia para o convento.
 
Chegada do Círio ao Portinho da Arrábida
 
Procissão na Praia do Portinho
 
Formava-se o cortejo. À frente ia o padre, os elementos da Comissão de Festas e as pessoas que levavam o andor seguindo-se os festeiros com bandeiras de várias cores. Uns iam dizendo orações e outros cantando, pelo carreiro, sempre a subir, pela serra.
No Domingo, era a Missa no Convento, geralmente acompanhada com música vocal e instrumental. No sermão, eram feitas referências à Lenda da Senhora da Arrábida e à vida dos pescadores. Seguia-se a procissão pelas imediações do Convento, Bom Jesus, Largo da Eira , onde era feita bênção ao mar e regresso à capela do Convento, acompanhada pela Banda de música, bandeiras e crianças vestidas de anjinho.
Em alguns anos houve também a reza do Terço e a Via-Sacra, serra acima, até à Ermida do Senhor dos Aflitos.
Na Segunda-feira, era a descida do Círio para o Portinho, a que se seguia uma romagem à Lapa de Santa Margarida, uns a pé, outros de barco, onde havia missa antes do regresso a Setúbal. Mais tarde, esta Missa, passou a celebrar-se na capela particular de Manuel Vinhas, anexa à sua casa no Portinho.
Muitas pessoas iam à festa também para pagar promessas à Senhora da Arrábida. O pagamento da promessa era feito à vontade de quem prometeu. Havia pessoas que subiam a serra descalças. Haviam pescadores que iam pagar promessas feitas nos momentos em que temeram que o barco se afundasse e que não se salvassem. As mulheres, prometiam pelos filhos, pelos maridos, quando eles andavam na pesca do bacalhau, para eles irem e voltarem. Havia quem pagasse oferecendo bandeiras, levando os filhos vestidos de anjinhos, seguindo descalças, a procissão na serra. As mulheres prometiam mais pela família, os pescadores por eles próprios. Prometiam também quando temiam o desfecho de doenças graves, aquando de acidentes, nomeadamente das crianças e das mulheres nas fábricas de peixe. Neste caso, ofereciam objectos de cera. Com o tempo, cada vez mais promessas passaram a ser pagas em dinheiro.
Vários milagres eram atribuídos à Senhora da Arrábida. Quando o desfecho das situações de perigo era favorável, considerava-se um milagre e pagavam-se as promessas.
 
No cortejo de regresso para Setúbal, os barcos vinham todos a seguir o barco que transportava a Imagem da Senhora da Arrábida. As mulheres cantavam:

Adeus, Senhora da Arrábida
Para o ano hei-de cá vir
Ou solteira, ou casada
A Serra eu hei-de subir

Em frente a Galápos, o cortejo marítimo parava um pouco para saudar um casal que ali morava e que tradicionalmente dava a sua oferta para a festas, num envelope, transportado por um bote de terra para o cortejo.
À medida que se aproximava de Setúbal, a excitação aumentava: os apitos, os foguetes, a música, a alegria.
Uma multidão, de que sobressaiam as operárias das fábricas do peixe, aguardava os festeiros. Ia o povo do Troino, logo depois do almoço esperar.
O cortejo marítimo lá chegava aos cais, os barcos apitavam.O sino da Anunciada repicava. A imagem da Senhora da Arrábida seguia para a Igreja da Anunciada.

Terminado o período da Primeira Republica, a aliança crescente entre a Igreja e o Estado, com a dupla Salazar - Cardeal Cerejeira, iniciou-se uma "conversão" da população, rapidamente implicando os bispos e párocos, de qualquer modo mais a norte do Tejo do que a Sul. As romarias locais eram mal vistas, porque a hierarquia conservadora considerava-as mais pagãs que religiosas.
Durante a Primeira Republica, as festas do Novo Círio de Nossa Senhora da Arrábida não sofreram alterações de culto. As festividades brilhantes do Novo Círio eram a prova da intensificação do espírito religioso.

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